"Como almas penadas, erramos em direcção ao nada ou a qualquer coisa": o Facebook e a vida quotidiana
(Comentário de um texto sobre as ligações sociais através do Facebook).
Isabel Coutinho, "Retirar alguém das redes sociais. Facebook: desamigar é a nova palavra" in Público, 3 de Dezembro de 2009. Ver aqui:
http://www.publico.pt/Tecnologia/facebook-desamigar-e-a-nova-palavra_1412415
O Facebook tinha inicialmente um objectivo muito simples: aumentar a rede de contactos dos jovens universitários dentro do território universitário. Neste sentido, surge como um complemento das redes de "amigos" tradicionais (relações de co-presença física):
"Não se sabe se pela cabeça dos fundadores do Facebook, Mark Zuckerberg e Eduardo Saverin, passou alguma vez a ideia de que os utilizadores do site iriam estar preocupados com esta coisa de desamigar. É que o Facebook nasceu porque eles queriam conhecer outras pessoas. "Eles só queriam conhecer algumas miúdas..." é a frase que Ben Mezrich, autor do livro Milionários Acidentais - A Criação do Facebook: Uma História de Génios, Sexo, Dinheiro e Traição (que irá ser publicado em Janeiro pela Lua de Papel), mais tem utilizado para explicar como é que nasceu esta rede social em 2004". (ver artigo do jornal Público, citado acima)
Entretanto, em 2006, esta situação altera-se com o alargamento exponencial do Facebook.
"Era assim em 2004, quando o Facebook surgiu e se destinava apenas a estudantes (só desde Setembro de 2006 é que é aberto a toda a gente). Desde então muitas coisas mudaram, outras nem por isso". (ver artigo do jornal Público, citado acima)
Várias questão emergem: qual a razão do sucesso tão rápido deste tipo de redes? Qual a razão que nos leva a passar muitas horas em frente ao ecrã do computador fazendo amigos, conversando e jogando no Facebook? Será que este alargamento das redes sociais foi algo de novo? Poderíamos falar de novas formas de nos relacionamos socialmente? Ou, e este é o meu argumento principal, o facto destas redes começarem a alargar-se de uma forma exponencial seria um sintoma de uma mudança fundamental na nossa forma de viver o trabalho, a vida sentimental e a relação com os amigos?
Podemos, na verdade, fazer várias interpretações deste fenómeno. Uma primeira seria a mais habitual no mundo cibernético: a tese de que melhora a nossa condição de vida alargando o nosso círculo de amigos, descobrindo novos jogos, etc. numa lógica de fastfood de consumo e sexo. Um outra reafirma o papel da ligação social tradicional dizendo que, no essencial, nada muda. Finalmente, teremos uma tese mista, que irei defender, que acentua as interacções híbridas entre o mundo da tecnologia e a vida social nomeadamente na instância decisiva: o nosso quotidiano, a nossa apreensão subjectiva da vida do dia-a-dia. E que contextualiza estas mudanças no âmbito da crise da forma moderna de trabalhar e viver.
A tese de continuidade que reafirma a importância do social
Deixando para outra oportunidade a tese eufórica da defesa da Internet, a argumentação mais tradicional no mundo académico, defendida por alguns sociólogos, passa pela ideia de que, no essencial, nada muda. O Facebook é mais um instrumento de relacionamento social (a tese de Manuel Castells é semelhante: ver o meu artigo sobre a noção de rede social: aqui).
"Aquilo que a investigação tem mostrado é que as pessoas acabam a repetir na Internet o mesmo tipo de dinâmicas sociais que têm habitualmente. "O meio tecnológico muda, mas o fenómeno social acaba por ser mais ao menos o mesmo. 'É essa também a opinião de Gustavo Cardoso, sociólogo do ISCTE, autor de Para Uma Sociologia do Ciberespaço. "A maneira como usamos o Facebook é aquela como nos relacionamos face a face. É mais uma ferramenta nessa estratégia de relacionamento'." (ver artigo do jornal Público, citado acima)
A tese da mudança
Contudo, as investigações mostram que algo está a mudar. Para entendermos essa mudança teremos de fazer uma espécie de mudança de paradigma no nosso olhar como investigadores sociais (ver Maffesoli e Gabriel Tarde). Como digo num texto sobre Gabriel Tarde, "o estudo dos fenómenos como as novas redes sociais mediadas digitalmente deve valorizar igualmente as apreensões subjectivas e diferentes que agregadas constituem a realidade tal como é defendido por Gabriel Tarde, Certeau, Le Roy Ladurie e Descola. Devem-se evitar as diferenciações entre moderno e pré-moderno em torno de grandes categorias reificadas. De facto, no meio das novas tecnologias digitais coexistem lado a lado o moderno e o pós-moderno".
(http://socialsoftware-portugal.blogspot.com/2010/02/da-importancia-do-quotidiano-no-estudo.html)
Desta forma, partindo de uma perspectiva assente no quotidiano em que as misturas, entre pré-moderno, moderno e pós-moderno, estão cada vez mais presentes, alargam-se e aceleram-se as redes sociais de co-presença e as mediadas pelas redes digitais assistindo-se a uma espécie de efeito de ampliação que não é necessariamente apenas quantivativo. Ou seja, quanto mais tempo passamos no social-networking mais aumentam e se reforçam os nossos relacionamentos baseados nas relações interface mas também os de fora dessa rede local.
No entanto, parece que esta mudança não é assim tão acentuada. A noção de que estarmos a mudar radicalmente não é totalmente suportada pelas investigações. Algumas pesquisas, nos EUA e na Europa, mostram que em grande parte os relacionamentos via SNS (Social-Networking Sites) correspondem ainda às redes baseadas na interacção de co-presença física.
"Para os jovens a internet não é nem um inferno nem um paraíso e não muda completamente o mundo. É também, e acima de tudo, um instrumento de diversão. Na utilização concreta verifica-se que, “apesar da imensidão da Web, a tendência é para tecer pequenas teias pessoais.”
In http://www.josecarlosabrantes.net/detalhe.asp?id=219&idc=38
Um outro estudo, nos EUA, diz-nos que, no caso dos jovens adolescentes (12-17 anos), as estratégias variam em função do género. No caso das raparigas, pretende-se reforçar as relações de co-presença já existentes. Os rapazes, pelo contrário, pretendem alargar a sua rede social.
"The survey also finds that older teens, particularly girls, are more likely to use these sites. For girls, social networking sites are primarily places to reinforce pre-existing friendships; for boys, the networks also provide opportunities for flirting and making new friends".
in http://www.pewinternet.org/PPF/r/198/report_display.asp
View PDF of Report
Contrariando assim parcialmente a tese de que o Social-Networking na Internet não muda no essencial a relação social, seria interessante sugerir uma tese intermédia entre euforia dos defensores da internet e os seus críticos tradicionais.
Em primeiro lugar, vale a pena uma maior aproximação ao fenómeno a partir de uma visão fenomenológica e quotidiana. Por exemplo, saber se estas diferenças também são significativas entre grupos sociais mais velhos. Neste sentido, poderíamos mesmo avançar a hipótese de que os STS tendem a ser uma das várias vias para alargar os nossos horizontes numa fase mais avançada da vida. Poderia mesmo fazer-se uma tipologia da sua utilização em função do maior ou menor grau de risco e nomadismo que, em grande parte, atravessa duas fases essenciais da vida: a entrada no mundo do trabalho e a sua saída. Seguindo parcialmente os preceitos da religião hindu e os fundamentos das éticas orientais, talvez esteja a emergir, com a ajuda destas novas ligações, uma consciência que encara o investimento no mundo do trabalho assalariado como um intervalo e não como o centro da vida (a valorização do trabalho e do modelo empresarial moderno emergiu, numa coincidência que Max Weber estudou exaustivamente, no século XIX, com a ética protestante baseada na predestinação).
Num certo sentido, no caso de alguns grupos sociais, os STS reforçam as lógicas de fechamento em grupos relativamente estáveis e fechados que ainda se centram numa base tradicional de vida. Noutros grupos, pretende-se não só alargar como também alterar as práticas de uso do próprio STS. Seriam de incluir neste grupo, jovens artistas e criadores para quem o contacto com grupos de afinidade ultrapassa a lógica do grupo tribal baseado no território e para quem o trabalho assalariado deixou de ser o centro da sua vida. Por outro lado, num certo sentido, estaríamos perante novas tribos que já não assentam na lógica territorial ou identificação com valores de tipo nacionalista ou local. Seria uma alteração na sua individuação num sentido mais aberto ao mundo e à diferença (ver a individuação em Carl Gustav Jung). Ou, usando os termos de Gilbert Simondon, assiste-se a uma nova mistura entre o étnico e o técnico em que as lógicas étnicas territoriais estariam a mudar em favor de uma nova mistura entre o técnico e o étnico. Uma nova forma de ser tribo, usando a ideia de Maffesoli.
De certa forma, estas redes seriam também produtoras e efeitos (ao mesmo tempo) da mudança e crise no coração da forma mais divulgada de relação social: a condição assalariada do trabalho produtivo que assenta na energia e na produção material (Ver Karl Marx). A mudança nessa relação passa, como veremos com Antonio Negri, pelo aumento exponencial do trabalho imaterial (trabalho essencialmente de comunicação) criando as condições subjectivas para a crise desse modelo.
De acordo com Richard Sennet (ver aqui),
"podíamos ter perdido a atracção pela acção política; podíamos estar confusos quanto ao valor moral de muitas experiências emotivas, mas dispúnhamos [na época moderna] de critérios razoavelmente claros e partilhados para avaliar a criatividade e a produtividade de cada um, no processo de fabricação de artefactos úteis ao mundo".
A relação baseada no trabalho material funcionava, no quotidiano, como um momento de estabilidade na nossa relação com o mundo. A ética moderna do trabalho dava-nos a estabilidade para conduzir a nossa vida acreditando que, no final, uma boa reforma baseada no nosso sacrifício seria um pouco o céu na terra. Todavia, toda esta crença começa pouco a pouco a ser corroída com o neo-liberalismo selvagem e a indefinição na nossa relação com um trabalho cada vez menos material e assente em relações cada vez menos solidárias.
"Actualmente, mesmo esse frágil gancho com o que está "fora de nós" veio abaixo. Com as novas regras da livre concorrência, a insegurança da vida sentimental se estendeu à vida profissional. Qualquer parceria se tornou precária. A presença do outro não mais suscita apelo à colaboração, mas sim desejo de instrumentalização. Tornamo-nos uma multidão anónima, sem rosto, raízes ou futuro comum. E, se tudo é provisório, se tudo foi despojado da dignidade que nos fazia querer agir correctamente, quem ou o que pode apreciar o "carácter moral" de quem quer que seja? Na cultura da "flexibilidade", como reza o jargão neoliberal, ou fingimos acreditar em valores que não mais existem ou acreditamos, verdadeiramente, em miragens - e a alienação é ainda maior." (recensão de R. Sennet: ver aqui)
Neste esvaziamento, começamos a tentar coisas novas, uma espécie de vagabundagem que tanto nos liberta como aumenta a insatisfação e nos leva para novas dependências. Neste contexto, surge o fenómeno das redes sociais digitais como uma saída (em grande parte ilusória) para a crise do mundo moderno.
Nas palavras de Sennet, "isolados do público, pela paixão dos interesses privados, e dos mais próximos afectivamente, pela degradação do trabalho e pela volubilidade sentimental, erramos em direcção ao nada ou a qualquer coisa." (recensão de R. Sennet: ver aqui)
A satisfação imediata e rápida assente num consumo acelerado, usando em grande parte a Internet, torna-se o nosso lema. A moda da amizade fast-food, sexo e dos jogos on-line parece ser o nosso destino comum.
"Tanto faz o bem e o mal, o justo e o injusto, quando o que temos como guia é o bem-estar do corpo e das sensações. Resta acreditar que "consumir objectos de desejo" é o mesmo que "satisfazer desejos". Enquanto acreditamos nisso, o show continua: no desfile das drogas, cartões de crédito, pornografia na Internet, etc." (recensão de R. Sennet: ver aqui)
Desta forma, esta via esgotada do capitalismo, de uma forma de "ser" assente no assalariado e na ética do trabalho, dá lugar a um novo niilismo que passa pelo contacto acelerado e corporal com as redes digitais numa lógica de sensações rápidas e sempre insatisfeitas. Uma crise que tanto nos pode levar a um afundar cada vez maior no consumo e nas relações sociais fast-food, como pode fazer emergir coisas novas, alternativas e mais criativas de vida, e de relação com a morte.
Como diz António Negri,
"o lugar onde se produz o excedente de produtividade já não é a fábrica, nem o sistema da grande indústria, mas o conjunto de ''redes'' sociais por meio das quais essa massa de trabalhadores imateriais aprende, coloca-se em contato, comunica, inventa, produz mercadorias e faz tudo isso reproduzindo subjetividades. Porque somente a alma e o cérebro produzem hoje excedente".
No meio desta crise das categorias básicas da modernidade, assiste-se, por todo o lado, à emergência de movimentos sociais novos e difusos (e algumas faces do social-networking digital são um exemplo), muitas vezes numa lógica de multidão e de rede polimórfica, em que se defende, nas palavras de Negri (1997), o "direito de ir-e-vir e de cidadania, [um] nomadismo da força de trabalho, da procura de novos espaços de expressão e vida, uma condição irremissível da liberdade e da riqueza".
(ver: António Negri, "Direita e esquerda na era pós-fordista: mudanças na esfera da produção levam a novas formas de organização e atuação políticas", in Folha de São Paulo, 29/06/97,http://www.dossie_negri.blogger.com.br/index.html [Consultado em: 12 de Fevereiro de 2010]).
Nota: muitas destas ideias surgiram a partir da leitura de textos (e de conversas com) de Moisés de Lemos Martins, Zara Pinto Coelho, José Bragança de Miranda, Albertino Gonçalves, Jean-Martin Rabot, Edmundo Cordeiro e Pedro Daniel R. Costa (ver aqui o seu excelente blog "Sociologia da Individuação"). O meu sincero agradecimento a todos.