segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

A genealogia da percepção dos ecrãs digitais

Irei comentar um pequeno texto retirado do e-paper de S. Fragoso "O Espaço em Perspectiva", sobre a genealogia da percepção dos ecrãs digitais a partir de Merleau-Ponty e Couchot.


"O conceito-chave de Couchot para se entender o modo particular como a subjetividade é construída nos meios visuais é o de sujeito-SE (sujet-ON, em francês). Fazendo acoplar à palavra sujeito o pronome indefinido on (equivalente a se em português, como em on dirait que…/dir- se-ia que…), Couchot busca exprimir uma outra experiência de subjetividade, aquela que deriva não de uma vontade, de um desejo, de uma iniciativa, de um lapso de um sujeito constituído (ainda que ausente), mas dos automatismos do dispositivo técnico, “questão chave – explica ele – num momento em que o numérico parece, aos olhos de muitos, desapossar o criador de toda singularidade e de toda expressividade e reduzir o ato criador aos puros automatismos maquínicos” (Couchot, 1998: 8).

O conceito foi inspirado em Merleau-Ponty (1999: 322) – “a percepção existe sempre no modo do se” – mas foi apropriado por Couchot numa perspectiva bastante particular, visando dar conta das relações existentes entre a subjetividade e a automatização do gesto enunciador.

A idéia de automatização vem evidentemente de Simondon (1969: 120s), o primeiro a pensar o acasalamento homem-máquina e a transferência de parte dos procedimentos produtivos à tecnologia.

De uma forma bastante simplificada, podemos resumir como se segue o pensamento de Couchot sobre o sujeito-SE. Com a evolução das tecnologias de produção simbólica, há um momento em que os procedimentos de construção ganham autonomia: eles podem funcionar sem a intervenção (ou com um mínimo de intervenção) de um operador. No campo das técnicas figurativas, essa automatização do gesto enunciador aparece pela primeira vez de forma suficientemente poderosa e complexa com o surgimento da fotografia no século XIX, mas as suas primeiras tentativas remontam às técnicas de codificação óptica e geométrica da perspectiva renascentista por Leon Baptista Alberti. De fato, é com a perspectiva de projeção central, em primeiro lugar, e logo depois com os vários aparelhos que automatizam parcialmente o processo pictórico (o intersetor de Alberti, a tavoletta de Brunelleschi, o prospettògrafo reticolato de Dürer etc.) que a pintura começa a se liberar do olho e da mão do pintor, transferindo parte do processo construtivo a dispositivos ópticos e a uma série hierarquizada de operações matemáticas, que corresponde a uma espécie de algoritmo geométrico. “A perspectiva – observa Couchot (1988: 35) – é portanto uma máquina de ver no sentido mais completo do termo: perceber e figurar, registrar e inventar”. É, portanto, no Renascimento, em primeiro lugar, com a sistematização albertiana da perspectiva, e com maior ênfase no começo do século XIX, com a invenção da fotografia, que nasce aquilo que Couchot chama de o sujeito aparelhado (le sujet appareillé), fortemente dependente de uma máquina que realiza boa parte das operações de ver e representar. Esse sujeito aparelhado que nasce com a perspectiva e a fotografia passa a funcionar sob um modo indefinido, impessoal e anônimo (nele, o eu se ausenta), sob o modo do SE, para retomar a expressão de Merleau-Ponty.

“Essa indefinição – adverte Couchot – não significa, entretanto, que esse SE perde suas qualidades de sujeito e se torna objeto. SE permanece sempre sujeito, sujeito do fazer técnico, mas um sujeito despersonalizado, fundado numa espécie de anonimato” (1998: 8). Assim, à medida que vai sendo substituído por processos de automatização, o olhar é colocado a funcionar, a partir do século XV, sob o modo impessoal do SE. Mas ele não perde, com isso, a sua função mais propriamente subjetiva (definidora da ação de um sujeito). Pelo contrário, grande parte desses procedimentos técnicos vão, na verdade, ampliar, reforçar o seu papel agenciador da visão. O sujeito se torna anônimo, sem identidade (porque, em essência, é um algoritmo que “vê” e enuncia), mas o seu papel estrutural, o seu papel “assujeitador” é potencializado. Em lugar de apagar-se e perder a sua função, o sujeito torna-se a razão plena do ato da figuração: não se trata mais simplesmente de uma imagem, mas de uma imagem vista, de uma imagem que é visada, a partir de um lugar originário de visualização, por algo/alguém, que é uma espécie de sujeito-máquina.


A perspectiva – sobretudo aquela que nos vem regendo durante pelo menos os últimos 500 anos – inaugura, portanto, novas bases culturais, científicas, epistemológicas a até mesmo políticas de se pensar e praticar as imagens. E se é verdade que vivemos hoje uma “civilização das imagens”, qualquer conhecimento sério dessa civilização deve começar por aquilo que a funda: a perspectiva".

FRAGOSO, S. O Espaço em Perspectiva. Rio de Janeiro, E-Papers, 2005.

Texto retirado originalmente do blog:

.............................................................................................

Comentário

No caso de percepção do ecrã de um computador, haveria um momento de uma percepção não consciente ou semi-consciente (aliás existe em muitas das nossas interacções mediadas visualmente). Seria o momento da captura em que o predador não-humano tomaria o "comando" embora crie a ilusão de que o comando está no lado humano (ver texto de Pedro Costa sobre a percepção Cyborg em: http://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/9878). Aquilo que Gilbert Simondon, já nos anos 50 do século XX, tinha sublinhado na sua noção de individuação técnica.

Desse ponto de vista, este enquadramento, esta captura é um processo lento que tem o seu gérmen no surgimento da perspectiva.

“A perspectiva – observa Couchot (1988: 35) – é portanto uma máquina de ver no sentido mais completo do termo: perceber e figurar, registrar e inventar”

E este processo de longa duração continua com a imprensa, a fotografia, a televisão, o cinema, o vídeo e os ecrãs digitais da paisagem e os pessoais. Assim toda a perspectiva que surge com a pintura como representação fiel do real, a génese do enquadramento racional, de uma espécie de racionalização do olhar, é um processo maquínico de captura que culmina no ecrã digital moderno através de todo um processo de re-mediação (termo usado por Bolter e Grusin; ver também Lev Manovitch).

Contudo, se estas imagens nos capturam também nos criam a ilusão de sujeitos.

"Em lugar de apagar-se e perder a sua função, o sujeito torna-se a razão plena do ato da figuração: não se trata mais simplesmente de uma imagem, mas de uma imagem vista, de uma imagem que é visada, a partir de um lugar originário de visualização, por algo/alguém, que é uma espécie de sujeito-máquina".

Criando uma emoção dominada por um sentir emocionalizado, que reage primariamente aos primeiros impulsos. Em vez de uma emoção livre que vem de um sentir autêntico, um sentir impessoal como diz Perniola, há um sentir mediado e imediato em que o fisiológico predomina, o ego e as percepções erradas, estereótipos, lógicas de exclusão básicas e violentas do outro e da diferença, etc.

"A perspectiva – sobretudo aquela que nos vem regendo durante pelo menos os últimos 500 anos – inaugura, portanto, novas bases culturais, científicas, epistemológicas a até mesmo políticas de se pensar e praticar as imagens".

Como diz o autor, há portanto uma nova civilização da imagem iniciada com a perspectiva racional que tem efeitos não apenas estéticos ou sociais mas também políticos (ver texto de Moisés Lemos Martins:

Sem comentários:

Enviar um comentário